Roberto Dourado

Qualquer um pode ser um poeta... desde que o amor lhe toque (Platão - O Banquete)

Textos


PLANTÃO DE POLÍCIA: ENTRE O RODO E O FUZIL

 

A pauta do noticiário policial tomava conta de quase toda a edição do telejornal. Era crime pra cá, violência pra lá, crimes de toda ordem: estupros; assassinatos; sequestros relâmpagos; ORCRIM do norte; do leste; do oeste; do centro; e de dentro dos gabinetes dos paços municipais; PCC; CV; facções de toda ordem e lugar; facções também dentro dos mais diversos parlamentos; corrupção de juízes mercenários; invasões de terras produtivas; assaltos à mão armada no confessionário da Igreja; sacrilégio por violação ao sacrário, pensando que era de ouro; pancadaria nas negras na praia que jogavam flores pra yemanjá; destruição do templo do candomblé, seus tambores e orixás, com atentado direto a Olorumare; racismo nos estádios; assédio sexual na Esplanada dos Ministérios; suborno nas comissões de licitações; contrabando e descaminho nas fronteiras; exploração de garimpo em terras indígenas; tráfico internacional de mulheres e de bebês; tráfico de órgãos; exploração do trabalho infantil; rebeliões em presídios do Maranhão e Rio Grande do Norte; etc. etc. etc.

 

Até que ninguém aguentava mais e alguém desligou a televisão e foram dar uma volta na praça.

 

Do lado da praça do passeio ficava uma unidade da polícia. De lá se ouvia o eco da voz de dois policiais que tratavam de sérias questões administrativas:

 

Policial G. Gomes: Porra, já faz mais de dois meses que pedi minha aposentadoria e nada! Esse pessoal do RH é foda, as coisas não andam por lá! Por quê demoram tanto com o meu processo?

 

Policial B. Braga: Sei lá, pede uma ajudinha pro chefe.

 

Policial G. Gomes: Vou não, aquele filho da puta é um sacana, só quer me humilhar. Preciso disso não, já tenho tempo. Vou esperar.

 

No plantão seguinte, durante a rendição, o diálogo continuou:

 

Policial G. Gomes: Foda, cara! vou sair da polícia da mesma forma que entrei!

 

Policial B. Braga: Por quê, o que aconteceu?

 

Policial G. Gomes: Fui chamado pra uma reunião com a chefia. Vão discutir se o “guarda” deve lavar ou não lavar a VTR (viatura) no final do plantão.

 

Policial B. Braga: Então, o chefe te chamou no rabo?

 

Policial G. Gomes: Pois é! Acho que foi porque reclamei da outra vez. A terra gira, mas as pessoas não. As coisas não mudam. As telas são sempre as mesmas, mas em novas molduras!

 

Policial B. Braga: Foi sempre assim, não muda!

 

Policial G. Gomes: Rapaz, tu concorda com isso?

 

Policial B. Braga: Concordo nada, mas já lavei, Bitencourt tem medo, Zé!

 

Policial G. Gomes: Pô, eu tô aqui há mais de trinta anos e a discussão é sempre a mesma. As discussões daquela época era pra saber se os guardas da turma de “x” ou “y” ficavam constrangidos lavando as VTRs. Caramba! Isso é muito humilhante. Isso lá é serviço de polícia!

 

Policial B. Braga: Tenha calma, rapaz, falta pouco tempo pra você se aposentar. Não se irrite, as coisas não vão mudar mesmo!

 

Policial G. Gomes: Pois é, o problema, naquele tempo e hoje, sempre é o mesmo e sempre tem os caras que buscam o caminho da “média” e do compadrio, os “puxa-sacos”, os “baba-ovo” da chefia, dizendo: eu sou o “fodão” operacional; eu não me esquivo pro “serviço”; eu não me constranjo a nada; sou capaz de pegar com a mesma destreza um fuzil e o cabo de um rodo, se for preciso; blá, blá, blá…

 

Policial B. Braga: Haja paciência!

 

Policial G. Gomes: Quem quiser que ache bonito, respeito a limitação de quem o faça, mas ver um policial que recebe treinamento para vencer o crime ter que se expor, e expor também a corporação com um rodo na mão, é de lascar, né?

 

Policial B. Braga: É mesmo!

 

Policial G. Gomes: Pois é, imagina a sociedade presenciando a cena: O policial vestido num lindo uniforme, com colete e cinto de guarnição, portando uma pistola no coldre e um fuzil na bandoleira. Esse cara deveria prestar um serviço compatível com o salário e as tralhas que recebe (SEGURANÇA PÚBLICA). Aí ele é flagrado, pela mesma sociedade que o paga, dançando com um rodo ou vassoura na mão, porque o chefe dele mandou ele lavar a VTR! Né mole não!

 

Policial B. Braga: Antigamente haviam os constrangedores disfarçados, quem são os desavisados de hoje, pois os pobres guardas humilhados são os mesmos?

 

Policial G. Gomes: Não se trata de preguiça, não, mas de VERGONHA INSTITUCIONAL mesmo!

 

Policial B. Braga: No fundo, o que se discute é a respeito do papel público dos agentes (policiais) que representam a corporação! É uma vergonha pra casa, meu velho!

 

Policial G. Gomes: É isso mesmo. Ao se expor lavando uma VTR no posto de gasolina o policial, em vez de prestar o serviço compatível com suas funções públicas institucionais desdenha no desvio de função (desvio de finalidade), ao segurar com uma mão um rodo e na outra um fuzil!

 

Policial B. Braga: Desvio de finalidade, é isso mesmo!

 

Policial G. Gomes: Imagina a hipótese “absurda” de uma emergência policial (um assalto, por ex.): qual desses instrumentos o “guarda-fodão” deve utilizar e apontar ao criminoso: o cabo do rodo, da vassoura, ou com um jato de espuma de sabão? Ou, ainda, em vez disso, sendo polícia, esfregar uma alça de mira pra tirar a lama do pára-brisa ou do pára-choque?

 

Policial B. Braga: Imagine a dúvida do policial sobre se deve usar algemas ou dar uma baldada (de plástico!!!) na cabeça do meliante! kkkkkkkkkkkkk

 

Policial G. Gomes: É mesmo pra dar risadas! Que polícia é essa?

 

Policial B. Braga: Não consigo parar de rir! kkkkkkkkkkkkk

 

Policial G. Gomes: Veja essa: um fato curioso, pra não dizer catastrófico, aconteceu comigo esta manhã, quando de forma educada perguntei ao frentista sobre o uso dos utensílios para lavar a VTR, ao que ele orientou que eu colocasse a VTR do outro lado e passasse o rodo no chão, pra tirar a água empoçada.

 

Policial B. Braga: Hã?!

 

Policial G. Gomes: Pois é, meu amigo! foi exatamente isso que aconteceu. O interessante é que depois descobrimos que um dos frentistas que nos atendeu tinha sido multado, naquele dia, pelo batalhão de trânsito da polícia.

 

Policial B. Braga: Puta merda! Vocês falaram alguma coisa pra chefia, sobre isso?

 

Policial G. Gomes: Nada, sem constrangimentos! Diante da situação, a equipe decidiu não lavar a VTR e o chefe que se foda!

 

Policial B. Braga: Eu soube que alguém tratou do assunto com o departamento de manutenção das VTRs, ou com alguém da área de licitações pra fazer um contrato com algum lava-jato pras VTRs da Companhia, eles responderam?

 

Policial G. Gomes: Que nada, só pilhéria! Nem houve retorno!

 

Policial B. Braga: Olha, uma atitude saudável pra corporação seria que os chefes dessem respostas às demandas levantadas aqui.

 

Policial G. Gomes: Vou provocar, quer ver?

 

Policial B. Braga: Faz isso não, você pode se prejudicar.

 

Policial G. Gomes: Tô me aposentando mesmo.

 

Policial B. Braga: Vai com calma, se avexe não!

 

Policial G. Gomes: Todo mundo sabe que o constrangimento existe e, por algum motivo, as pessoas se calam, por um certo pudor, para não ferir vaidades, e terminam por esvaírem-se em conversas de bastidores, à boca pequena, com palavras sutis, mas verdadeiras, porque revelam sentimentos recônditos.

 

Policial B. Braga: Realmente, tem coisa que não dá pra aguentar!

 

Policial G. Gomes: Tudo isso para não dizer do “medinho” de falar, pois os “homens do poder” podem revidar com algum tipo de “perseguição branca”, tipo, criar justificativas, critérios (ou seja lá o que for) para excluir das operações, viagens, funções, tarefas, lotações, gratificações, ou o que o diabo for. Tenho medo não!

 

Policial B. Braga: Bem, o que vale pra “Chico” deve valer pra “Francisco”: já viram outras polícias lavando VTRs em postos de gasolina? Acaso as VTRs dos diretores, coordenadores gerais, etc, são lavadas por eles?

 

Policial G. Gomes: Eu lá sou mané, rapaz. Tô de olho, vejo tudo, comigo não!

 

No final da tarde desse mesmo plantão, houve a dita reunião e o policial despejou o verbo dizendo tudo o que quis. Todos concordaram com a experiência e opinião do antigão. Consenso geral, com pleonasmo e tudo. No quartel reinava a paz. Ninguém falou mais nada sobre o assunto.

 

No plantão seguinte, quando o policial G. Gomes entrou na sala, havia um bolo com um desenho do escudo da corporação escrito com chantily:

 

Parabéns, antigão G. Gomes, pelos 35 anos de serviço prestados à sociedade.

A corporação se orgulha e te agradece: a tua aposentadoria saiu!” Ass.: RH.

Roberto Dourado
Enviado por Roberto Dourado em 06/07/2023


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